ArtePraia 2023

Como foi?

A 5ª edição do ArtePraia aconteceu nos dias 15, 16 e 17 de setembro de 2023 nas praias urbanas de Fortaleza, Ceará. Com mais de dois milhões de visualizações on-line no período de inscrição, somaram-se 418 propostas de intervenções artísticas inscritas, vindas de 24 estados do Brasil, sendo 9 selecionadas, conforme o edital.

Assim, nove pessoas artistas visuais contemporâneas propuseram trabalhos singulares, abrangendo poéticas que moviam no público desde a possibilidade de partilhar pelo dizer suas memórias vividas na praia enquanto lugares de afetos ao questionamento do próprio fazer artístico e seus acessos.

 

Entre as propostas, houve, portanto, tempo-espaço para o que o corpo se deslocasse em diversos sentidos: repensar os sonhos, observar outras naturezas, experimentar mover com ondas, criar e desenhar narrativas na matéria fugaz da areia, acionar a potência do que seria e do que será o dito lixo, mergulhar na imagem fluida das algas e brincar com suas cores, perceber no silêncio o barco como casa a suspender os ritmos, dar-se conta da força de pequenas sementes, indagar a cidade: para quê? para quem?

Assim, numa edição que mais uma vez cumpriu com o caráter efêmero proposto pelo ArtePraia, os registros de fotografias, vídeos e palavras que aqui disponibilizamos compõem um tecido de rastros luminosos que se somam aos resquícios daquilo que permanece a ecoar na memória de quem experienciou as vivências com as obras de arte - apontando, ainda, a quem não teve qualquer contato presencial com elas, uma sugestiva faísca pronta a acender alguma chama para a imaginação.

 

 

“Em organismos complexos como o nosso, equipados com vastas capacidades de memória, os momentos fugazes de conhecimento em que descobrimos nossa existência são fatos que podem ser registrados na memória, apropriadamente categorizados e relacionados a outras memórias que concernem tanto ao passado como ao futuro antevisto” 

Antônio Damásio

 
 

Artistas e obras selecionadAs

Curador: Gustavo Wanderley 
Co-curadora: Sara Síntique


"Arte pra quê?
Arte pra quem?"

Artista: Eduardo Frota (CE)
Local da intervenção: Itinerância no mar entre os espigões da Praia dos Crush

 

Em proposições em arte pública, estruturar questões políticas é compromisso evidenciado na compreensão do espaço coletivo. A intervenção de Eduardo Frota elaborou dispositivos-perguntas trazendo para um lugar central da urbes - em uma situação de privilégio de horizonte e por meio de uma tática de translado entre

tramas sociais, comunidades e origens - uma interrupção da paisagem usual que provocou ainda mais questões, inspirando conversas significativas como: Arte pra quê? Arte pra quem?

Em duas grande faixas de tecido fixadas num barco, essas perguntas escritas, iam e viam, no balanço do mar, entre os espigões da orla de Fortaleza/ CE. Um dispositivo cuja repercussão se deu mais na pós-operação da intervenção, pois as perguntas seriam disparadoras de desdobramentos para todas as pessoas que se dispusessem a lê-las. Tais questões repercutiram em debates acalorados nas redes sociais extrapolando, inclusive, o tempo espaço da proposta.

Seria, então, esse tipo de recurso algo potente para fazer refletir o campo da arte?

Para onde o movimento-barco seguirá navegando no sacudir político do pensamento?

Outros questionamentos.

 

Aparições à beira mar

Artista: Pedra Silva e Rastros de Diógenes (CE/PB) 
Local:
Itinerância entre Praia da Barra, Poço da Draga e Praia dos Crush

 

Regeneração. Substantivo feminino. Vastos significados e, no momento atual, a única concepção de mundo capaz de atuar em tempo de crises múltiplas e constantes e no caos climático.

Mais que recorrer a um dispositivo de entendimento da natureza como recurso, a intervenção Aparições à beira mar buscou elaborar distanciamentos da utilidade quando tentou provocar algum tipo de repercussão sobre a transitoriedade da vida, da natureza e da paisagem. E ainda sobre as histórias contadas nas areias da cidade. E as histórias das pessoas vencidas?

Com fragilidade, a intervenção tentou também elaborar uma perspectiva, em seu discurso criativo, para um urgente tipo de leitura da Gaia - outro substantivo feminino - onde os seres não seriam classificados em hierarquias. São folhas, sementes, grãos de terra, búzios, que, de modos apenas aparentemente sutis, denotam a força da Terra.

Em tempos de pegadas ambientais irreversíveis, em que o antropoceno se instala, estratégias e tecnologias dos povos originários são forças de validação de outras formas de sentir e fazer em uma urgente instalação de processos regenerativos.

 

AlaPraia

Artista: Coletivo ALA (Arte Livre Ambulante, MG)
Local: Praia do Futuro

 

Brincar e permitir uma aglomeração de pessoas que pudessem jogar. Afinal, a potência da realização da intervenção AlaPraia residia na convivência.

Como ambulantes artistas que são, o coletivo se instalou perfeitamente no lugar proposto, como em uma composição de mais um serviço oferecido por tantas outras pessoas que trabalham nas orlas de grandes cidades litorâneas.

Aguçando a atenção de trabalhadores e frequentadores da Praia do Futuro, uma nova barraca na praia era montada. Mas o seu conteúdo surpreendeu: carimbos, estênceis e forminhas figurativas, como dispositivos que simulavam uma operação de aprendizagem em arte.

Objetos comuns, como chinelos de dedo, que, quando utilizados ao caminhar, utilizavam-se da trapaça da ordem: marcavam as pegadas para trás, simulando outro rastro. Desenhos simples nas areias. Carimbos de algumas metades: peixes, caranguejos, sereias, cavalos, dragões, acionando uma múltipla possibilidade de novos seres e imaginários. Todos os elementos importavam na realização da intervenção e do convite. Crianças e seus responsáveis, uma vontade de participar e uma entrega a outro tempo.

E foi também na alegria do acolhimento e no cafezinho com queijo mineiro – sim na praia! –, que a força da disponibilidade ao encontro se fez valer. Assim foi o tipo de memória que se fez prevalecer: envolvimento e afeto.

 

Habitar a dobra da onda

Artista: Danielle Fonseca (PA)
Local: Praia do Futuro

 

Ir na onda, costuma-se falar cotidianamente.

A próxima onda! Essa onda já passou.

Atravessar-se por ela. Deixar-se levar. Permitir-se? Metáforas elaboradas pelo uso das expressões “das ondas” seriam questões relevantes no contemporâneo? Em tempos de desconfiança e de cerceamento de direitos pessoais, parece que a relevância de firmar-se em movimento é um ganho de beleza.

Entre a rigidez e a possibilidade da flexibilidade. Entre a possibilidade de pegar a onda ou ir contra ela. A adoção de uma perspectiva mais fluida e relacional, que reconheça a interconexão e interdependência de todos os fenômenos.

Arte Filosofia, filosofia e arte. Surf é filosofia? Ao surfar, os praticantes se encontram imersos em um ambiente dinâmico e em constante mudança, onde as ondas, o vento e as correntes se combinam para criar um lugar do imprevisível. Nesse contexto, o surf pode ser visto como um exemplo concreto da filosofia de Deleuze, que ressalta a importância de abandonar as estruturas fixas e abraçar a fluidez e a multiplicidade inerentes ao mundo.

Essas esferas de conceito dispararam a elaboração criativa da artista, que desemboca no Habitar a dobra da onda: ao comentar sua própria história como surfista, ao pegar ondas na praia do Futuro, pôs no mar desejos, sonhos, corpos e muitas outras possibilidades na ação. Pensar é verbo.

 

Passagem Onírica:
O sonho não falha

Artista: M. Dias Preto (CE)
Local: Praia da Barra do Ceará

 

“O sonho é algo de mais alta ordem, articulando memórias complexas na forma de enredos oníricos, verdadeiras simulações do ambiente e do sonhador.”
Sidarta Ribeiro

 
 

Sonho. Sonhar junto? Ou mesmo: é ainda possível sonhar?

Há de se conjugar um sonhar na primeira pessoa do plural. É desse nós que muitas vezes nos distanciamos e somos distanciados numa época em que, por mais que o conceito de pluralidade persista como essencial, as metas neoliberais de consumo individual e de meritocracia promovam uma tentativa de apagamento do sonhar .

Sonhar é essencial para o realizar. E a pós-modernidade nos distanciou dos sonhos e utopias de um bem-estar coletivo. Nesse contexto, sonho tornou-se, para muitas pessoas, significado de consumo individual.

Como propor, então, outras passagens oníricas?

Logo no começo da intervenção, no primeiro dia, a grande bandeira rosa choque erguida na ponte da Barra do Ceará com a frase "O sonho não falha" foi danificada, arrancada da ponte, naufragando na foz. Um gesto que nos moveu a pensar: que sonho não falha? Ou ainda: de quem é o sonho que não falha? Em que parte da cidade o sonho falha, não falha? É possível insistir com o sonho, pelo sonho?

O atravessamento da imagem ficou. E os disparadores elaborados para as escrituras dos sonhos ficaram ainda mais potentes. A ação de propor em espaço público perguntas sobre o sonhar provocou respostas como: eu não sonho mais.

Será que ainda sonho? Não tenho sonho algum. A maior parte das pessoas adultas não sabia o que dizer a respeito, dar testemunho.

A realização dos desenhos e escritas nas bandeiras-sonho deu-se, desse modo, principalmente pelas crianças e adolescentes. Bandeiras coloridas para desenhos que reivindicavam no jogo a existência do sonhar.

Ao final da intervenção, no domingo, seguiu-se uma procissão coletiva, gente erguendo suas bandeiras-sonho ao vento, em uma suspensão do tempo. Seguiu-se, desse modo, para o barco com os objetos que M. Dias Preto dispunha em um esforço de levar, da foz do rio, os sonhos, ao mar.

Na impossibilidade de cumprir as rotas previstas, entretanto, outras belezas foram descobertas: imensas árvores nas margens do rio e seu emaranhado de raízes, elas e as águas iluminadas pelo pôr-do-sol mais bonito da cidade. A paisagem somada à reivindicação perfurou algo de um sonhar acordado. Voltar a terra, atravessar novamente a ponte, descer do barco: presenciar M. Dias Preto a mirar no horizonte que, sim, algo ali se realizou.

A Foz é um filtro de sonhos.

E ela tem essa capacidade de filtrar o que despeja no oceano.

 

Instituto Brasileiro
de Memória Costeira

Artistas: Coletivo IBMC (RN)
Local: Praia do Futuro, Praia dos Crush e Poço da Draga

 

Uma ficção. Um instituto inventado, com logomarca, farda, regramento, procedimento e registro. Uma espécie de IBGE de memórias costeiras. Um coletivo formado por três pessoas pesquisadoras ambulantes que recorreram às perguntas sobre a relação de cada pessoa entrevistada com a praia.

Em relação à dinâmica e ao contexto do projeto e na relação do lugar público por excelência, que são as praias em áreas urbanas em cidade litorâneas, o coletivo registrou em áudio e transcreveu para o site parte dessas memórias.

Em tempos de memória cada vez mais instruídas por algoritmos de redes sociais, a serviço de um "fazem lembrar", e de proliferação de imagens, trazer textos de histórias de vida a partir da escuta pode ser alternativa potente de evidenciar singularidades. E pausas.

Fazer relembrar contextos de memórias das pessoas nas praias possibilitou testemunhar fagulhas de sentidos e silêncios em meio à paisagem urbana, com ilimitadas buscas de atenção, quase ininterruptas.

 

Navegantes

Artista: Marcos Martins (CE/ES)
Local: Praia da Sabiaguaba

 

Três barcos impossibilitados de navegar no mar. Materializados com recursos falíveis às águas. Barcos em pau-a-pique. Memória de casas, de abrigos e residências de tantas pessoas, de famílias inteiras de pessoas trabalhadoras. Abrigos, ambas as estruturas.

Corpos fundamentais na construção da humanidade, que definem comportamentos e decisões. Um corpo híbrido inventado, híbrido casa-barco - proposição escultórica efêmera que habita, certamente, em que a viu. Ecos de pescadores.

Palafitas instaladas, embarcações suspensas em estruturas altas e imponentes, ainda que próximas e reconhecíveis. Uma aposta em fazer mergulhar no imaginário e no estranhamento proposto pela intervenção de grande escala presente, agora, em registros de espanto. Na transição entre a fuga e o guardar na memória:

Habitar na navegação do impossível.

 

Algareum

Artista: Susan Moreno
Local: Praia do Mucuripe

 

Poderia-se alcançar, na praia, a proposta de uma intervenção que faria refletir a relação entre arte e ciência de forma abrangente? Pública? Democratizada? As algas marinhas foram a aproximação do lugar e da materialidade disparadora da narrativa e da operação artística.

Uma mesa com tratamento expográfico, que poderia estar em museu ou galeria. Percebia-se, ali, uma mimese dos gabinetes de curiosidades do século XVIII: Vidros, espécies vivas, água, lupas, cadernos de anotações, folhas livres, varais… e a possibilidade de propor imagens e palavras tingidas com tintas feitas das próprias algas.

A intervenção era pública, não havia necessidade de distanciamentos e tudo era sensível ao toque. A visitação intensa de crianças, principalmente, exerceu, aos poucos, a percepção de que a beleza está na possibilidade do encontro, e o cuidado estético era o convite necessário para a potência da conversa.

Tingir, ouvir, entender em libras, pintar, elaborar, ler e uma gama de possibilidades que repercutiu na suspensão do que se espera de uma visita às praias, e, talvez, do se espera de uma visita à uma exposição.

 

Pirilampos do Planeta

Artistas: Flávio Carvalho e Lula Duffrayer (RJ)
Local: Mucuripe

 

De longe, algo chama a atenção de todas as pessoas. Há algo ali: Iluminado, suspenso, colorido, dispostos em areia, pedindo aproximação.

Perto, algo de encanto, surpresa, reconhecimento. São os pirilampos uma instalação de pequenas panes de conceitos pré-estabelecidos sobre o que poderia ser de ordem estritamente descartável.

Descartável. Diz-se do objeto que se lança fora, no todo ou em parte, após o uso.

Em uma rotina de processos de descarte ininterrupto de plásticos, recompor o olhar para os resíduos cotidianos, em uma operação escultórica, intenciona causar interrupções na lógica de tratamento do descartável.

Aproximar pessoas que vivem do descarte de resíduos, profissionais de coleta seletiva, de uma narrativa em arte, de luxo e de mercado, proposta pela dupla de artistas, é efeito pulsante para percepção dos engendramentos e contradições entre consumo e arte, além da percepção da cristalização de hierarquias entre as atividades humanas.

Propõe-se: precisamos pensar nas nossas relações (descartáveis?) também.